Depois de parte da infância passada nos frios do Sul, retornei a velha e boa Acesita (assim preferem os antigos). Até que mamãe e papai encontrassem um lugarzinho para a família e o cachorro, passei uma temporada alegre na casa de minha vó. Não reclamei, não murmurei. Talvez a glória da infância abrisse os meus olhos para a maravilha que era estar em família e me negasse a realidade um pouco descontrolada de nossa condição financeira.
Não há nada melhor para uma garota de 6 anos que um guarda roupa de mãe. Melhor em dobro, era o baú de vestidos de Dona Mercedes, a dona da casa e avó materna. Me lembro do tempo em que chegava da escola em uma kombi branca e corria pela casa afora a procura do meu sonho de princesa. As flores e formas que estampavam as roupas me enchiam os olhos. E mais belo ainda era ver os vestidos se arrastando até o chão. Em busca de estratégias que os fizessem caber justinho nas minhas idéias de menina, amarrava fitas, fazia nós, levantava barras, costurava tecidos e histórias.
O príncipe era qualquer um. Até nosso animal branco e peludo servia. Tive a ousadia de estender o papel do mocinho a um primo mais velho. Mas não houve tempo para acumular tanta coisa assim no coração: rapidinho minha alegria foi desfeita por fotos em que ele aperecia sorridente ao lado de outras menininhas.
E claro, no banquete da princesa não podia faltar o doce de leite feito pela verdadeira dona dos vestidos. Eram sequinhos, morenos e tinham a forma de pequenos losangos. "Docinhos gostosos da vovó" era o nome da especialidade servida no meu castelo de ardósia e cimento, rua dos Marinheiros, Bairro Novo Tempo. Olhando assim, o reino parecia até próspero e pacífico.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
Encontro marcado ♥ 02:21
Afonso Pena, 1537. Não anotei a data. Enquanto acompanhava o ritmo das imagens que revestiam a fachada de um prédio, uma figura humana interrompeu meu olhar. Na mesma direção em que se dispunham as imagens, o corpo de um homem se misturava horizontalmente com o lance de cores que se moviam em direção a mim. Como num gesto cinematográfico que retorna ao enquadramento ignorado, voltei o rosto para investigar que tipo de homem se desmontava frente a minha posição de cidadã urbana, atenta. Jamil tinha uns 48 anos, tinha barriga, não me lembro da barba e as roupas pareciam rasgadas e sujas. Seria uma vítima qualquer da miséria se eu não corresse o risco de procurar sua identidade.
Entrei no prédio localizado em umas das principais avenidas belorizontinas e voltei de maõs vazias. Meus problemas não foram resolvidos. Mas a imagem do homem se reverberava em minha cabeça. Ao me direcionar ao estacionamento da Igreja Boa Viagem, pude perceber que não apenas eu, mas também um homem negro e alto se enchera de curiosidade sobre a vida do tal homem horizontal. Sinal vermelho. Não movi os pés em direção as faixas brancas e mais uma vez espreitei com os olhos o que se desenrolava diante de mim. O curioso número 2 falava ao celular.
"Ele está morto". Pensei de súbito. Não recortei outras possibilidades. Pra mim, só existia aquela. Um pensamento logo me tomou: como eu pude ignorar a possibilidade daquele corpo estar ali estendido sem vida? Pensei que ele estava apenas dormindo ou drogado, mas nem me passou pela cabeça o fato de que seu sangue não teria mais ritmo ou fluxo. Não é fácil aceitar a morte quando ela aparece assim, jogada, no meio dia de uma sexta-feira.
E o homem insistia em permanacer ali, olhando para baixo, vigiando o "morto" como se numa situação de respeito ou luto. Para mim, ele estava sendo velado. Logo, o homem se foi e eu tentava me convencer de que correr atrás de um desconhecido era bobagem.
Depois de alguns passos largos e alguma coragem, alcancei o moço que ainda permanecia ao telefone e eu, já temendo o pior lhe perguntei:
"Moço, eu vi que você observou aquele cara deitado no chão. Você estava chamando a ambulância?"
"Não.."
E antes que ele pudesse emendar, tentei me desculpar de minha ousadia adivinhando a relação passada que ligara as duas vidas.
"Ah sim, você o conhece..."
"Sim, éramos amigos de farra, sabe como é que é. Aí fomos juntos ao grupo de Alcoólicos Anônimos e há puco tempo o vi e ele estava bem. Jamil não era daqueles que não tinha jeito. Havia esperança para ele".
"Ah sim". Abaixei a cabeça sem dizer muita coisa.
"Mas então recebi a notícia de que ele estava mal."
E sim, ele acabara de comprovar o estado em que se encontrava o ex-amigo. Ele falou mais um pouco ao celular e parecia conversar com uma atendente de telemarketing. Mas antes de perder a paciência com o funcionário que estava do outro lado da linha, largou umas palavras soltas.
"Aquele ali não tem mais jeito. O que temos que fazer é orar por ele."
Perguntou meu nome e nos despedimos com um cumprimento engraçado, onde ele fazia um barulho ao estalar os dedos perto dos meus.
Sai atravessando a rua, agradecendo a Deus por ter me dado a oportunidade de presenciar um encontro último e único na vida de dois desconhecidos.
The End.